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Urbanismo-miliciano

.Enquanto saber científico que compõe uma narrativa sobre a cidade, o Urbanismo moderno emergiu na segunda metade do século dezenove, na Europa, numa época de crescente industrialização, adensamento nas cidades, expansão do dinheiro pela renda da terra (venda ou aluguel) e a necessidade de controle do território e dos corpos que nele circulam. Foi principalmente a partir desse último ponto que se desenvolveu uma ideia sanitária: em prol da saúde pública, o saber médico deveria intervir na espacialidade dos corpos. As moradias “insalubres” deveriam ser combatidas a tudo custo. Paralelamente, o urbanismo tornava-se uma técnica do Estado para o controle das “classes perigosas” que se aglomeravam nas cidades de então.

.Os primeiros urbanistas eram, ao mesmo tempo, doutores e policiais.

.Um exemplo é o “bota-abaixo” na cidade do Rio de Janeiro, quando (1903) dezenas de cortiços do centro da cidade foram demolidos pela administração pública sob o pretexto do combate à febre amarela e outras doenças. É sabido que alguns agentes políticos nutriam profundo interesse imobiliário na mesma região. Aos antigos moradores empobrecidos das chamadas “classes perigosas” restou a opção de subir os morros.

Centro do RJ por Augusto Malta, 1906. Arquivo Nacional
Centro do RJ por Augusto Malta, 1906. Arquivo Nacional

.O mesmo Rio de Janeiro de um século depois demonstra que não é apenas a partir da ação oficial que o urbanismo enquanto técnica de controle se faz presente. Nos últimos anos as milícias, grupos armados formados principalmente por egressos e ativos das forças militares, se consolidaram enquanto agentes na acirrada e contínua disputa pela cidade. A partir da análise de práticas desses grupos, pesquisadores cunharam o termo “urbanismo miliciano”.

.O primeiro passo da lógica urbano-miliciana é expulsar traficantes baseados em regiões periféricas, com conivência de agentes do Estado e a coação contra associações de moradores. Estabelecidos em uma territorialidade, o grupo passa a lucrar com a cobrança de “taxas de segurança”, serviços como internet, gás, água, jogos de azar, roubo de recursos naturais como óleo de dutos da Petrobrás. Outra forma de ganhar dinheiro é a partir da terra, onde há abertura de loteamentos, construções, venda/aluguel de imóveis, além da gestão dos conflitos daquela região a partir do seu interesse.

.Segundo relatório do GENI-UFF e Observatório das Metrópoles (2021), nota-se o compromisso do Estado na legalização de diversos terrenos construídos em áreas sob domínio da milícia. Também há a atuação no espólio, no aluguel e na resolução dos conflitos (cumprindo papel de “síndico”) em imóveis que integram o programa Minha Casa Minha Vida na Zona Oeste do Rio.

.“(…) na zona oeste da cidade, a milícia passou a dominar o conjunto do MCMV por conta de um cabo da PM que se tornou síndico e tornou a milícia local um ente permanente da administração condominial. Segundo relatos, o referido policial expulsou diversos moradores, se apropriou dos apartamentos e os vendeu com ‘contratos de gaveta’ providenciados pelos milicianos.” (GENI-UFF/Observatório das Metrópoles. 2021)

O Globo, 30/05/2021
O Globo, 30/05/2021

.O medo da violência, ocupa hoje o trono que outrora foi ocupado pelo contágio, e a mercadoria “segurança” está em alta. É essencial para a legitimação da milícia o discurso contra a violência, encarnada parcialmente no tráfico de drogas. A organização do espaço de acordo com o “urbanismo-miliciano” contribui para a ordem hegemônica através da “pacificação” do território: diminui-se o número oficial de homicídios, os dissidentes são contidos, os conflitos são resolvidos por uma instância política que está “junta e misturada” com o Estado e os governantes podem se gabar de seu esforço em prol da segurança pública no combate ao crime. Nesse sentido, São Paulo é O caso de sucesso por enquanto.

.O modelo arquitetônico preferido dos milicianos são os condomínios, é claro!

.Em 2019, pelo menos 24 pessoas morreram no desabamento de um edifício em Muzema; já na última semana, pai e filha foram vitimados após desabamento de outro edifício em Rio das Pedras. Dois territórios controlados pelos milicianos urbanistas.

Foto: Cláudia Martini. Muzema, RJ
Foto: Cláudia Martini. Muzema, RJ

REFERÊNCIAS

BRESCIANI, S. Da Cidade e do Urbano. 2018.
CHALHOUB, S. Cidade Febril. 1996
Fundação Heinrich Böll et al. A expansão das milícias no Rio de Janeiro. 2021.

 

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