Urbanismo-miliciano
.Enquanto saber científico que compõe uma narrativa sobre a cidade, o Urbanismo moderno emergiu na segunda metade do século dezenove, na Europa, numa época de crescente industrialização, adensamento nas cidades, expansão do dinheiro pela renda da terra (venda ou aluguel) e a necessidade de controle do território e dos corpos que nele circulam. Foi principalmente a partir desse último ponto que se desenvolveu uma ideia sanitária: em prol da saúde pública, o saber médico deveria intervir na espacialidade dos corpos. As moradias “insalubres” deveriam ser combatidas a tudo custo. Paralelamente, o urbanismo tornava-se uma técnica do Estado para o controle das “classes perigosas” que se aglomeravam nas cidades de então.
.Os primeiros urbanistas eram, ao mesmo tempo, doutores e policiais.
.Um exemplo é o “bota-abaixo” na cidade do Rio de Janeiro, quando (1903) dezenas de cortiços do centro da cidade foram demolidos pela administração pública sob o pretexto do combate à febre amarela e outras doenças. É sabido que alguns agentes políticos nutriam profundo interesse imobiliário na mesma região. Aos antigos moradores empobrecidos das chamadas “classes perigosas” restou a opção de subir os morros.
.O mesmo Rio de Janeiro de um século depois demonstra que não é apenas a partir da ação oficial que o urbanismo enquanto técnica de controle se faz presente. Nos últimos anos as milícias, grupos armados formados principalmente por egressos e ativos das forças militares, se consolidaram enquanto agentes na acirrada e contínua disputa pela cidade. A partir da análise de práticas desses grupos, pesquisadores cunharam o termo “urbanismo miliciano”.
.O primeiro passo da lógica urbano-miliciana é expulsar traficantes baseados em regiões periféricas, com conivência de agentes do Estado e a coação contra associações de moradores. Estabelecidos em uma territorialidade, o grupo passa a lucrar com a cobrança de “taxas de segurança”, serviços como internet, gás, água, jogos de azar, roubo de recursos naturais como óleo de dutos da Petrobrás. Outra forma de ganhar dinheiro é a partir da terra, onde há abertura de loteamentos, construções, venda/aluguel de imóveis, além da gestão dos conflitos daquela região a partir do seu interesse.
.Segundo relatório do GENI-UFF e Observatório das Metrópoles (2021), nota-se o compromisso do Estado na legalização de diversos terrenos construídos em áreas sob domínio da milícia. Também há a atuação no espólio, no aluguel e na resolução dos conflitos (cumprindo papel de “síndico”) em imóveis que integram o programa Minha Casa Minha Vida na Zona Oeste do Rio.
.“(…) na zona oeste da cidade, a milícia passou a dominar o conjunto do MCMV por conta de um cabo da PM que se tornou síndico e tornou a milícia local um ente permanente da administração condominial. Segundo relatos, o referido policial expulsou diversos moradores, se apropriou dos apartamentos e os vendeu com ‘contratos de gaveta’ providenciados pelos milicianos.” (GENI-UFF/Observatório das Metrópoles. 2021)
.O medo da violência, ocupa hoje o trono que outrora foi ocupado pelo contágio, e a mercadoria “segurança” está em alta. É essencial para a legitimação da milícia o discurso contra a violência, encarnada parcialmente no tráfico de drogas. A organização do espaço de acordo com o “urbanismo-miliciano” contribui para a ordem hegemônica através da “pacificação” do território: diminui-se o número oficial de homicídios, os dissidentes são contidos, os conflitos são resolvidos por uma instância política que está “junta e misturada” com o Estado e os governantes podem se gabar de seu esforço em prol da segurança pública no combate ao crime. Nesse sentido, São Paulo é O caso de sucesso por enquanto.
.O modelo arquitetônico preferido dos milicianos são os condomínios, é claro!
.Em 2019, pelo menos 24 pessoas morreram no desabamento de um edifício em Muzema; já na última semana, pai e filha foram vitimados após desabamento de outro edifício em Rio das Pedras. Dois territórios controlados pelos milicianos urbanistas.
REFERÊNCIAS