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Rebelião das Meretrizes

A prostituição, diz-se, é o mais antigo trabalho no mundo. Também há quem afirme que o trabalho é a mais antiga prostituição do mundo. Para as mulheres, desde o fortalecimento do patriarcado como regulação social, a prostituição e o trabalho doméstico e reprodutivo são as funções principais às quais podem recorrer ou optar por ocupar-se. Como forma de sobrevivência ou de garantir autonomia, em São Paulo a história das mulheres não foi tão diferente.

 

As mulheres e as janelas treliçadas durante séculos eram um lembrete da influência moura na cultura paulista. As mulheres, quando raramente saíam às ruas (já que a rua era espaço de trabalho e passagem, logo restrito a mulheres de bem) o faziam cobertas dos pés à cabeça à moda muçulmana. As janelas treliçadas de madeira garantiam a circulação de ar e matavam a intimidade, ao mesmo tempo em que confinavam as mulheres ao espaço doméstico.

Com o passar do tempo na cidade, as janelas se fortificaram, a ideia compartilhada de espaço público e privado se modificou e as mulheres passaram a transitar mais na rua. A única coisa que se manteve, em todo esse tempo, foi a segunda ocupação das mulheres, menos valorizada, mas mesmo assim alimentada pelos homens e pela necessidade: a prostituição. Durante a escravidão, apesar dos estupros de escravizadas ser não-raro, o trabalho sexual foi bastante exercido por mulheres negras, originárias e miscigenadas.

Em uma discussão feita apenas por homens, a regulamentação ou não da profissão data na cidade do século XIX. Um relatório de 1880 falava que “o ex-Delegado de Polícia que procedeu sempre com zelo e critério tomou outras providencias sobre a conduta escandalosa das meretrizes nas ruas públicas, obrigando-as a assinarem termo de bem viver, de modo que hoje não se observam mais aquelas cenas imorais e viciosas que outrora essas mulheres infelizes ostentavam”. O termo de bem viver era um artifício antigo de tentativa de moralização da conduta pública, já as mulheres no ofício, tratavam-se de “escandalosas infelizes”. No final do século XIX foram cadastradas 200 mulheres em exercício na cidade, que deveriam seguir uma série de regras para continuar trabalhando. Obviamente, essas eram mulheres pobres, já que o exercício da mesma função no mercado de luxo nunca foi perseguido nem regulamentado.

 

Mulheres em casa de tolerância na região do Bom Retiro

Até o começo do século XX a prostituição de mulheres pobres poderia ser encontrada em regiões diversas da cidade, que passava ainda por seu primeiro surto urbanizatório. Não só a demolição das ruas e habitações na Sé, mas a cultura do passeio, difundida na cidade com o piegas nome anglicizado de footing, exigia que os espaços públicos, antes relegados à parcela empobrecida trabalhadora, fosse embelezado para os passeios das classes abastadas.

Durante o governo de Getúlio Vargas, e logo de Juscelino Kubitschek, tanto a revisão da moral – em especial com o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) – quanto a revisão urbana – com o Plano de Avenidas, que valorizava imóveis até então ocupados por essas mulheres – acabaram por empurrar as prostitutas para o Bom Retiro. O paredão da linha de trem das ferrovias Sorocabana e Santos-Jundiaí era uma delimitação “natural” às ruas Itaboca e Aimorés. Pelas laterais eram delimitadas pelas ruas Silva Pinto e Ribeiro de Lima, formando a imagem de uma ferradura, o que possibilitava um controle por parte da polícia da entrada e saída de pessoas. Além disso, a comunidade judaica europeia que já ocupava o Bom Retiro atraiu para a região mulheres polonesas fugidas da guerra e da pobreza e a atenção de Adhemar de Barros e Getúlio Vargas, que em pleno nazismo procurava vigiar mais de perto a comunidade.

Segundo o prefeito da época, Barros, não só facilitava o policiamento como também oferecia “um interessante campo para estudos sociais, defendendo, ao mesmo tempo, a ordem e a moralidade públicas”. De fato, grande parte das imagens que temos das ruas e mulheres desse período provém de monografias da Escola de Estudos Sociais. Em levantamento de combate à sífilis entre prostitutas, em 1948, os números mostravam que a maioria das mulheres estavam na faixa dos 21 aos 35 anos, mas registrou também grande número de mulheres com menos de 20 anos e 9 com mais de 50 anos. O espaço amostral da pesquisa, utilizado por um médico, foi de 1000 mulheres, e ele estimava que ocupavam os imóveis da região cerca de 1500. Já as assistentes sociais, estimavam mais de 20 mil mulheres em toda a cidade.

 

Toda a administração, vigilância e burocracia era realizada pela polícia, que na literatura do período já era registrada como truculenta e abusiva. Às mulheres era permitido habitar pensionatos – chamados popularmente de casas de tolerância – em número máximo de três pessoas, gerando uma paisagem na região de casinhas térreas com grandes persianas, onde as mulheres se exibiam desnudas, como uma vingança às treliças que antes na colônia as cobriam. Apesar do confinamento, dessa vez em todo um recorte urbano, e da burocratização do controle, “os apelos públicos” e o interesse municipal não cessaram.

 

Até que, nos últimos dias de 1953, o governador, decidido a colocar fim na “zona”, desloca, em dia 31 de dezembro, o pelotão de choque para fazer o cerco aos 161 prostíbulos que abrigavam aproximadamente 650 mulheres. A pressa em resolver o problema justificava-se: em 1954 comemoraria-se o Quarto Centenário da cidade, evento (que vai ficar pra outro momento) destinado a ser um marco da história da cidade (e foi, de várias formas).

A ofensiva não foi aceita pacificamente pelas mulheres, chamadas pela imprensa de “decaídas”, que se insurgiram em protestos. O maior deles aconteceu nos primeiros dias de 1954, quando a morte de Antonia, causada por um ataque cardíaco fulminante, levou a protestos que incluíam desnudar-se na rua e atirar móveis das casas. Algumas mulheres furaram o bloqueio policial e passaram à rua José Paulino, onde tumultuaram estabelecimentos “de gente de bem”. Em um deles, um comerciante atacou três mulheres, Arinda, Guiomar e Alice com uma barra de ferro, levando duas a serem hospitalizadas em estado grave. Mais tarde, as mulheres seriam despejadas à força, com muitos relatos de violência. Essas trabalhadoras se espalharam pela região, que já começava a dar sinais de “decadência”, formando a Boca do Lixo (também assunto pra outro dia).

As ruas que formavam a zona de confinamento receberam novos nomes, sendo o mais emblemático deles o atual nome da rua Aimorés: Prof. Cesare Lombroso, célebre criminologista e eugenista que desenvolveu a teoria que afirmava que pessoas criminosas possuíam características natas, principalmente físicas.

Ainda hoje, o Parque e a região da Luz é são referência em espaço de prostituição na cidade, especialmente de mulheres trans, travestis e mais velhas, levando à criação, pela freira Regina e pela diarista Cleone, do grupo Mulheres da Luz.

 

Referências

Alvamar, Helena. O “Trottoir” na cidade de São Paulo. 1957.

Del Priore, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. 2004.

Leandro Machado/BBC News Brasil. A vida secreta das prostitutas veteranas que trabalham em parque histórico de São Paulo2018.

Rechtman, Enio. Itaboca, Rua de triste memória: imigrantes judeus no bairro do Bom Retiro e o confinamento da Zona do Meretrício (1940 a 1953)2015.

Rizzo, Paula Karine. O Quadrilátero do Pecado: A Formação da Boca do Lixo em São Paulo na Década de 50. 2017.

Telles, Lorena. Libertas entre sobrados: Contratos de trabalho doméstico em São Paulo na derrocada da escravidão. 2011.

Weinberg, Marie Felice. Histórias recontadas: imigrantes judias, empresárias em São Paulo (1945-1956). 2007.

 

 

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