Duas décadas, e Nada como um dia após o outro dia
Da ponte pra cá, antes de tudo, é uma escola
Hoje podemos pensar no legado do Hip Hop como um arquivo histórico privilegiado para tomar em conta as aspirações, revoltas, memórias e pontos de vista da população negra espalhada em diáspora pelas rotas da escravidão em diversos pontos do globo, em especial nas Américas. Ainda que a vasta produção musical negra ainda seja contestada enquanto arquivo histórico legítimo, mesmo em espaços críticos da/na historiografia, a avalanche de novas produções e a retomada de antigas narrativas sobre a perspectiva historiográfica dos povos de cor, racializados e empobrecidos, parece pouco a pouco fincar estas produções artísticas musicalizadas como um importante marco na circulação e resistência dos discursos da população negra no último século.
A periferia, no entanto, por muito tempo não só não foi considerada produtora de subjetividades dignas de tomar parte na cultura – corpos vazios e sem ética – como demorou a figurar como influência positiva na cultura urbana nacional. Os Racionais, por sua vez, foram responsáveis por esse reconhecimento da periferia como importante agente cultural e como referência cada vez maior na produção de subjetividades e tendências, mesmo em sujeitos com cores e valores distintos da periferia, inacreditável, mas os filhos da elite também imitam Racionais. Se na quebrada houve quem duvidasse da potência que o grupo “ainda poderia” representar, Nada como um dia levou os Racionais Mcs às páginas de cultura dos jornais de grande circulação (logo depois de um período de perseguição pela opinião pública, parcialmente descrita por Edy Rock em “A vítima”) e até ao programa símbolo do bom gosto cultural, Ensaio, da Tv Cultura – programa que eles reivindicaram como “condição” para aparecer na TV naquele momento.
A entrada destas narrativas no campo historiográfico aponta para diversas possibilidades, de inclusão de novos discursos em um arquivo monocromático, mas também o tensionamento do próprio campo, suas normas, seus alcances e sua finalidade. Como griots, quando cantam os Racionais comunicam aos seus, aos nossos, uma narrativa histórica, baseada na oralidade que amplia os alcances do arquivo histórico existente, mas também o coloca em cheque. Ao contrário de uma história gloriosa de colonização, independência, progresso econômico e vocação democrática, cantam 500 anos de Brasil como uma vergonha. Narrando de baixo, eles assustam playboy forgado que anda assustado, ao relembrar os seus erros do passado e não apenas reviverem a série de violências que envolvem esse projeto colonial brasileiro, como manda o script. O Brasil que recebeu “Nada como dia” dividia-se entre a promessa do milagre econômico da social democracia e os números do genocídio negro. A zona sul, tão cantada na obra, contava com o bairro mais perigoso do mundo segundo a ONU.
Hoje, o que segue assustando tanto playboy, é que ao narrar o drama negro que é ser preto no Brasil esses griots não encenam o papel de quem se encontra vencido, mas o papel do revoltado que cansou de ser ingênuo humilde e pacato e está disposto a muito para encontrar outro papel na sociedade brasileira. Em Nada como um dia, quem ontem era a caça hoje pá é o predador. Como fazer jus a esta obra central no campo das contranarrativas negras sobre o Brasil?
Em meio à celebração dos 20 anos de Nada como um dia após outro dia, a História da Disputa busca, através de um olhar afetivo, dialogar com este capítulo da história do Hip Hop e com ele compor um olhar sobre as narrativas que a cultura negra nos presenteou. Sem buscar explicar o disco, nos obrigando a simplificá-lo e diminuí-lo até que caiba no nosso texto, a tentativa aqui é de retomar como ele nos atravessa para, de forma contextualizada, cantar junto. O que a audição do disco ao longo destes 20 anos nos provocou e provoca? Quais significados, ou sentimentos, atribuímos a esta obra monumental que tem suas narrativas imortalizadas na voz dos sujeitos que erguem uma cidade que os busca soterrar? Como falar de um disco que nos significa tanto sem buscar explicá-lo, decifrar e traduzir o que já está dito, permitindo que ele siga falando por si mesmo? Como manter entre nós os segredos que o disco carrega em suas entrelinhas, os silêncios que as faixas acolhem, e mesmo assim celebrá-lo?
Pelos caminhos do sentir, propomos uma leitura que almeje celebrar os cantos das vozes dos 4 pretos mais perigosos do Brasil, mas que também acolha a celebração das nossas vidas, as vidas daqueles que escrevem o texto e as vidas de todos os demais que, apesar de tudo, seguem contrariando as estatísticas de um país que busca nos eliminar.
Nada como um dia após outro dia.
Lançado em 2002, o disco dialoga com um país que naquele momento era a 15ª maior economia do planeta, mas ao mesmo tempo o 8º país mais desigual do mundo. Com cidades cada vez maiores e mais populosas, o disco gravado e lapidado em São Paulo, uma metrópole e suas várias contradições, encontra seus ouvintes nos becos e vielas das periferias e favelas: é aqui que a cidade mais cresce e na virada do milênio estimava-se que 1 a cada 5 pessoas na capital viviam em favelas. Após o lançamento de Sobrevivendo no Inferno, famoso (dentre outras coisas) pelo seu caráter de denúncia social destacado em faixas como “Capítulo 4 Versículo 3”, Nada como um dia após o outro dia parece uma conversa ao pé da orelha, uma troca entre conhecidos que sabem muito bem onde estão e buscam, ali, sua liberdade. Lançado na autoproclamada locomotiva do país, o disco é o próprio calor da fornalha que vem trocar com aqueles que botam o trem pra andar e que o conhecem como a palma da mão. Sabendo onde está, a obra – e o grupo – sabem também para onde e como ir: meu modo, meu ponto de vista.
A abertura icônica de “Sou + você” é movimento declarado e fundamental de uma obra, um grupo, que através da música se implica, se mistura completamente à vida da maioria dos seus ouvintes. [Um carro derrapando, tiros, um cachorro latindo, um galo cantando, o barulho do despertador do rádio relógio, e as primeiras palavras do disco: “bença mãe”]. Na abertura da faixa, Mano Brown enquanto locutor passa a visão: começa mais uma batalha. Cabe a quem ouve encontrar forças, ali nas suas próprias casas, lavar-se nas águas sagradas da pia e descer pra arena, para seguir na correria de mais um dia. O mosaico periférico sonoro que a faixa monta, o carro, os tiros, o galo… misturam a música e a paisagem sonora dos extremos da cidade, misturam os samples, os ouvintes e os músicos, narradores das crônicas que compõe nossa vida, de Sul a Norte, de Oeste a Leste. A identificação entre quem fala e quem ouve se estabelece na paisagem sonora, reconhecível em diferentes contextos periféricos, de um canto a outro da cidade, e o grupo sabe que canta o cotidiano, não o excepcional. As faixas do disco duplo estabeleceram-se como clássicos em pouco tempo, e soam diariamente não só nos extremos de São Paulo mas de norte a sul do país. Mesmo conversando com tantos e tão diferentes contextos, a identificação exige pertencimento à cultura periférica: só quem é de “lá” sabe o acontece.
Iniciados os trabalhos e reforçado o desejo e a disposição por algo-mais para a nossa vida, “Vivão e Vivendo” chega que nem a gente depois de ouvir a primeira faixa: sonhadores que ainda acreditam, voltando por você-nós-mesmos, pelos loco, pelos preto e pelas verde consequentemente. Abrem-se assim os caminhos para as outras faixas do disco, onde caminhamos pelas quebradas, vielas, ruas e avenidas da cidade; partilhando dessa identidade favelada mesmo quando fora da favela, já que ela nunca sai da gente, nós favelados-universos em crise caminhamos pela cidade e pelo tempo tendo nós mesmos por companhia, mergulhados em nossos traumas, felicidades, aspirações, contradições e problemas.
Nada como um dia após outro dia, neste sentido, faz um exercício de coletividade muito interessante. Conforme aproxima a obra dos seus ouvintes, e se mistura a nós, ele abre espaço para pensarmos juntos sobre nossas trajetórias, nosso território, e como este espaço marca a nossa própria vida, buscando limitar nossas possibilidades existenciais, mas também nos apresentando rotas de fuga, criando mundos novos em que podemos habitar, mundos tão gigantes que atraem a todos: seu filho quer ser preto, ah, que ironia. Caminhando por nossos traumas e aspirações, o disco parece dedicado a todos nós, nunca a mim ou a você. Ele não inaugura, mas caminha por uma rota, aberta pela tradição afro-brasileira, na qual as identidades não são individuais, se não profundamente implicadas, misturadas, entre sujeitos e coletivos, corpos e territórios. É desse senso de coletividade que brota a possibilidade de expansão dos limites da nossa vida, uma luta conjunta e secular: um som que reaviva a guerrilha na mente, nos chama para ocupar postos na falange de senzala.
O tempo também é fundamental para as reflexões do disco duplo, afinal, nada como um dia após o outro dia. O rádio que anuncia a aurora é o mesmo que em suas ondas nos leva pelos desdobramentos de uma vida na periferia paulistana no começo do século XXI até o começo de outra madrugada, onde a lua cheia clareia as ruas do Capão. Ao longo da obra, no entanto, o tempo apresenta-se também em versões menos lineares do que costuma ter na historiografia tradicional, nos lembrando que os jovens negros da periferia de uma grande cidade também podem ser griots e usar suas narrativas poéticas como instrumentos políticos. Trabalhando a realidade brasileira, sobretudo paulistana, as narrativas implicam passado e presente de forma que não é apenas difícil, se não empobrecedor separar. É neste movimento imbricado, espiralar, que o disco nos convida à revolta, à raiva, à urgência, que quando coletivizadas podem ser combustível para a construção de outro futuro, outro que não o escrito para o Brasil, onde a gente carrega o trauma pra não ser mais um preto fodido. A raiva negra que faria sorrir Audre Lorde – ou talvez chamar pras idéia, se atentarmos para os papéis das mulheres negras nestas narrativas, ora mãe santificada e responsável quase exclusiva pelos filhos, ora vagabunda querendo mesmo é sensação de poder – é o combustível que pode fazer do nosso futuro algo mais que uma estrela, longe, meio ofuscada.
Potente e contraditório, o disco nos encontra. Caminhando pela cidade e pelo tempo, dia após dia, passamos pelas contradições da mente periférica, sem nunca abandonar o corpo que marca e é marcado por esse espaço. Ora as contradições nos apresentam vidas rebeldes, belos experimentos que passam desordenadamente pela inclusão e transgressão de um mundo que busca apenas a exploração e expropriação dos nossos corpos. Ora essas contradições se apresentam como a reafirmação dos lugares patriarcais que os 4 pretos mais perigosos do Brasil também sustentam: o lugar do provedor, do bom filho, do cachorro, do homem de negócios – sócio. Ora a contradição é o próprio fio que guia nossa vida, entre o corte da espada e o perfume da rosa. Tanto a potência, quanto os limites que o disco enuncia passam por essas contradições, podendo reafirmar as regras desse mundo bom de acabar, ou pedir pelo seu fim. O disco não é um manual do guerrilheiro urbano, tá mais pro toque de um mano mais velho, algo para escutar, refletir e sentir. Não vai pra grupo não, faz o certo, faz a sua.
Partindo do encontro entre obra, ouvinte, corpo e território, Nada como um dia após o outro dia, caminha – entre ruas e traumas, ambições e contradições – por nós mesmos. O disco nos aproxima, e a partir desta aproximação, esboça e fortalece caminhos de luta coletiva. A sensibilidade ímpar que acolhe, coletiviza, apoia e protege a população negra e periférica de São Paulo e do país é mais uma das marcas do disco. A lealdade aos parceiros está tão presente no disco desde sua produção que o lançamento, em outubro de 2002, aconteceu em uma casa de shows fora do circuito do rap, localizada no Brás. Os Racionais alugaram e adequaram o espaço, trabalhando com as próprias mãos no projeto de muita coletividade na quebrada. Mais que uma estratégia de ostentação, o esforço traduz, justamente como sempre admitiram, a oferta de uma presença até confusa, mas leal e intensa. É caminhando por nós, nos acompanhando em um caminho de autodescoberta e olhar crítico de nós mesmos, nossas ações, trajetórias e perspectivas de futuro, que o disco reforça nossa potência de transformação.
Salve Kl Jay, Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock, toda a equipe do Racionais e toda essa geração que revolucionou, essa geração que vai revolucionar. É desse jeito.