História Anticolonial, História Apátrida
Este Calendário 2023 fala do período colonial da história do Brasil, mas não porque gostamos dele. É que foi nessa época que deram as caras pela primeira vez nesta parte do mundo instituições como o estado, a igreja, o exército, os tribunais, as cadeias, as milícias e a escravidão. Ou seja, foi quando muitos dos nossos problemas atuais começaram.
Além disso, nossa mitologia nacional tem origem colonial.No Brasil, mesmo quando não nos interessamos por lições de história pátria, temos algumas imagens na cabeça sobre como o país começou. No princípio, tudo era mato. Daí vieram Cabral e as caravelas.
Nosso principal mito fundador, o “descobrimento”, está profundamente enraizado em nossa imaginação histórica. Pode ser livro escolar, novela, filme, documentário, reportagem, pintura, escultura ou meme. Falar da “origem do Brasil” é se referir a um conjunto de imagens que se repetem. São as caravelas desembarcando na praia, é o encontro entre europeus e indígenas, é uma missa celebrada em meio à selva, é uma carta relatando ao rei que, nesta terra, “em se plantando, tudo dá”.
Todas essas cenas foram construídas a partir de três relatos, sendo o mais influente deles a carta de Pero Vaz de Caminha. Antigamente os livros escolares a apresentavam como “certidão de batismo do Brasil”. Nela, um funcionário do rei relata ter chegado numa terra ainda não conhecida pelos europeus, descreve os encontros com os nativos do lugar, especula sobre a possibilidade de haver ouro e terra fértil e, por fim, pede um carguinho para o genro num governo colonial.
Como toda história pátria que se preze, a narrativa do descobrimento é uma bem elaborada lorota. Assim como é lorota que os peregrinos europeus comendo peru fundaram os Estados Unidos, ou que os franceses que derrubaram a Bastilha inventaram a liberdade. Não é mentira que Cabral chegou na Bahia em 1500, que os peregrinos comeram peru ou que a Bastilha caiu aos gritos de “liberdade”. As mentiras da história pátria estão menos nos fatos do que na sua seleção e fixação enquanto imagem que explica de onde viemos, quem somos e para onde devemos ir. Fora da imagem estão pessoas, eventos, ideias, identidades, táticas e tudo mais que precisa ser apagado para que a imagem fixa do passado prevaleça e as pessoas esqueçam do que precisa ser esquecido. O que o peru dos peregrinos esconde é colonialismo, genocídio, escravidão, tomada de territórios, imposição de interesses à força, guerra civil, segregação racial…. e séculos de resistência a tudo isso. E o Brasil? O que o mito de origem do Brasil esconde?
Primeiro, quando tudo era mato, o que era esse mato? A ideia de que os europeus encontraram no Brasil uma natureza intocada pela ação humana encobre milhares de anos de transformação consciente do espaço. Não se trata de selvas moldando o modo de ser de populações “selvagens”, trata-se de civilizações cujas culturas plurais moldaram a natureza segundo seus interesses e valores ao longo de milhares de anos.
Estudos arqueológicos recentes demonstram que a Amazônia tinha uma população de cerca de 8 a 10 milhões de pessoas na época de Cabral. Isso é mais ou menos o dobro da população total do Brasil na época da Independência, depois de 300 anos de colonização europeia e, portanto, de genocídio. O espaço amazônico, densamente povoado, não era mata virgem, mas um imenso jardim, atravessado por estradas e repleto de aterros, lagos artificiais e outras intervenções. Espécies de plantas desejadas pelos seres humanos, como a mandioca, o guaraná, o cacau e o tabaco estavam disponíveis em regiões densamente habitadas não por vontade divina, mas porque foram cultivadas ao longo de séculos por sociedades cujas vidas dependiam da produção de biodiversidade – o completo oposto do que veio se estabelecer com a monocultura colonial.
As sociedades do Brasil pré-colonial não possuíam Estado. Eram comunidades autônomas compondo redes pluriétnicas, com alianças e conflitos. Na Amazônia, existiram aldeias maiores que muitas cidades atuais, mas que por serem feitas de terra, madeira e palha deixaram poucos vestígios evidentes de sua existência. Civilização não-europeia sem sequer uma pirâmide? Pois é, e sem alienígenas também…
Erguer pirâmides ou templos cobertos de ouro não é sinal de civilização ou inteligência superior, mas de exploração inclemente de trabalhos forçados. A arquitetura monumental de faraós, reis e mandarins nos fala mais sobre hierarquia e dominação do que sobre maior ou menor capacidade de produzir cultura. As sociedades ameríndias não eram pequenas comunidades fechadas em si, com formas de organização política e econômica simples. Estradas pré-coloniais como o Peabiru, que se estendia do litoral paulista a Cusco, no Peru, conectavam teias de povos diversos culturalmente, autônomos politicamente e que não formaram Estados poderosos porque não quiseram e não por incapacidade. Como propôs o antropólogo Pierre Clastres, essas sociedades sem Estado eram, na verdade, sociedades contra o Estado. Suas formas de organização política recusavam conscientemente a formação de um poder superior separado, com grupos de privilégios e subjugação de outros povos.
Portanto, o que Cabral e as caravelas introduzem no Brasil não é a civilização, mas sim a imposição de um Estado fortemente armado, de uma Igreja francamente intolerante, de um modelo de família impositivo e opressivo e de um regime de trabalho escravista e monocultor. Introduz também a varíola, a gripe, a sífilis e outras doenças que contribuíram para o rápido despovoamento da América nos primeiros tempos de contato.
Cabral era capitão de uma armada composta por caravelas, que eram pequenos e eficientes navios de guerra, pilhagem e comércio. Apesar de seu escrivão ter relatado um encontro pacífico com os indígenas do sul da Bahia, essas embarcações eram verdadeiros caveirões dos sete mares, desenvolvidos em disputas por rotas comerciais e por territórios entre cristãos e muçulmanos no Mediterrâneo e na costa atlântica da África. A armada de Cabral tinha como destino pilhar e comerciar na Índia, para onde de fato se dirigiu e onde grande parte de sua tripulação morreu em combate com concorrentes muçulmanos pouco depois de chegarem.
O encontro na praia em 1500 só foi pacífico porque o destino das caravelas de Cabral não era ainda submeter o Brasil, mas a Índia (se é que o encontro foi realmente pacífico, já que o que sabemos dele é a palavra de Caminha). Nas décadas seguintes, quando os europeus mandaram expedições para explorar a costa do Brasil, a paz deu lugar à guerra, à escravização e ao genocídio. Para dar um passo além daquele de Cabral e tornar a terra lucrativa era preciso implementar os mecanismos perversos do colonialismo, incluindo a escravidão e o extermínio. Não por simples crueldade (ainda que a crueldade exacerbada seja uma consequência necessária de qualquer regime de desigualdade de poder), mas por, como se diz hoje, empreendedorismo.
O motor da expansão colonial europeia foi a concorrência entre reinos rivais, cada qual aliado a empresários interessados nos lucros da pilhagem e do comércio fora da Europa. Antes de Cabral, essa expansão já tinha saqueado muito ouro e controlado grande parte do comércio marítimo da África, assim como tinha atingido as rotas de comércio mais lucrativas do mundo, na Ásia. A pilhagem de Astecas, Incas e outros povos encontrados pelos espanhóis na América estava apenas começando. Em todos os casos, a colonização foi uma parceria público-privada na qual os investidores entravam com o dinheiro e o rei entrava com a violência e com seus profissionais, ou seja, os militares.
Assim como Cabral, os demais comandantes de expedições e administradores coloniais eram militares: capitão de armada, capitão donatário, capitão-general, capitão-mor… Quem governou o Brasil por mais tempo não foi Pedro II, nem Getúlio, nem Lula. Foram os militares. Foi algum tipo de capitão. Entre 1534 e 1808, essas terras passaram 274 anos tendo como principal autoridade do Estado um indivíduo com alta patente militar. Acima dele estava o rei, que de Lisboa nomeava e dava ordens que seriam recebidas (e nem sempre obedecidas) dali alguns meses. Donatários e capitães-generais podiam mandar fundar ou abandonar cidades, fazer guerras, exterminar povos inteiros, punir crimes sem direito a julgamento, com enorme poder discricionário.
A colonização portuguesa foi nosso mais extenso regime militar. Um regime que servia para organizar a violência necessária à espoliação de povos originários e à escravização de pessoas trazidas à força do interior da África para a produção de mercadorias de alto valor no mercado europeu. Isso não significa que os militares decidissem sozinhos, já que a seu lado (e, por vezes, em conflitos com eles) estavam poderes políticos e religiosos que também influenciaram os rumos da formação do Brasil.
As cidades coloniais têm alguns traços em comum que dizem algo sobre nossa formação. Suas primeiras construções para além das moradias são uma igreja ou capela, uma casa de câmara e cadeia, uma praça com um pelourinho e um quartel ou fortificação. No caso das cidades litorâneas ou em áreas de fronteira, muitas fortificações. Quando cresciam, as cidades passavam a ter também catedrais, palácios de governo e tribunais, a câmara municipal passava a se chamar Senado da Câmara e as elites locais passavam a afirmar sua condição de “nobreza da terra”.
Assim, contrabalançando o poder dos comandantes militares portugueses havia elites de senhores de engenho, negociantes e altos funcionários, todos brancos, embora não todos nascidos na Europa. Exemplos dessa elite escravocrata colonial encontramos aos montes nas árvores genealógicas de detentores de grandes fortunas no Brasil atual. Como a de João Dória Jr., que remonta a banqueiros de tempos anteriores a Cabral, passa por altos cargos na colônia, investimento no tráfico de pessoas escravizadas, posse de engenhos de açúcar e, finalmente, gerações de políticos profissionais, desde o bisavô prefeito de Salvador ao pai deputado federal. Nada disso o impede de afirmar sua origem humilde e seu não pertencimento à classe política.
O Brasil colonial foi construído sob domínio de instituições portuguesas, mas a atuação dessas instituições foi transformada pela prática cotidiana da escravidão e espoliação aqui praticadas. Os pelourinhos, que já eram utilizados para torturar prisioneiros acusados de crimes na Europa, foram aqui adaptados à repressão escravista. As igrejas, igualmente adaptadas ao mundo colonial, passaram a congregar as pessoas segundo a cor de sua pele – a matriz era dos brancos, a do Rosário ou de São Benedito, dos pretos. As milícias, antigas corporações portuguesas, foram também divididas entre a dos brancos, a dos pardos e a dos “Henriques”, ou seja, dos pretos. Como se percebe, a categorização das pessoas segundo a cor da pele foi uma invenção dos colonialistas europeus que se enraizou profundamente no Brasil para melhor organizar a sociedade escravista.
Naquele tempo, além do poder dos militares, o poder da igreja católica era desmedido. Por exemplo, o Tratado de Tordesilhas se sustentava na autoridade do papa. Porém, poucas décadas depois de Cabral, a toda poderosa igreja católica rachou, dando origem a diversas igrejas protestantes. Além de concorrentes políticos de Portugal, franceses e holandeses que disputavam a posse de partes do Brasil eram também concorrentes religiosos da Igreja católica. Assim, o esforço de jesuítas e de outros missionários na conversão de indígenas tinha seu impulso relacionado à contra-reforma, movimento que reagiu a esta cisão reforçando a violência e intolerância no mundo cristão.
No Brasil, a igreja foi decisiva na sujeição de diversos povos à ordem colonial, bem como na repressão a práticas, modelos familiares e religiosidades indígenas, africanas, ciganas, judaicas, protestantes ou simplesmente destoantes de sua visão estreita de mundo. Foi no período colonial que a gloriosa “família tradicional” foi forjada no fogo da inquisição e moldada pela violência privada de fazendas escravistas. Uma das condenadas pela Inquisição na Bahia, a costureira Felipa de Sousa, foi presa, torturada, humilhada e açoitada publicamente em 1592 sob a acusação de que “namorava molheres e tinha damas”. Outra, a indígena Iria Álvares, de Pernambuco, foi condenada três anos depois por ter uma família bígama e uma religiosidade dissidente. Já o barbeiro Salvador Rodrigues foi denunciado pelos próprios irmãos, em Belém, no ano de 1661, por se relacionar com homens.
Porém, onde existe opressão existe resistência, e mesmo a conversão religiosa não significava necessariamente sujeição. Quando a Inquisição chegou ao interior da Bahia, em 1592, descobriu que indígenas cristianizados haviam proclamado seu próprio papa e criado seu próprio cristianismo, na Santidade de Jaguaripe. A maior parte dos indígenas contatados por missionários não tinha problemas em acolher o Deus bíblico às suas religiosidades, mas a exigência da igreja não era de que cressem em Jesus, era a de que matassem todos os demais deuses ou que os considerassem demônios a serem combatidos.
A imagem da “primeira missa no Brasil” que acompanha dez em cada dez livros de história pátria simboliza um sentido religioso para a chegada das caravelas, fazendo com que a pilhagem colonial seja lembrada como benção divina. Na prática, a conversão religiosa colonial foi um processo de disciplinamento, controle e repressão sem o qual não teria sido possível o lucro do pau-brasil, da cana de açúcar, do ouro, das drogas do sertão, do tabaco, do algodão etc.
Carregamos essa espoliação no nome. Assim como ocorre em países como a Costa do Marfim e a Argentina (derivado de “prata”, em latim), o nome Brasil descreve a primeira mercadoria exportável que os europeus encontraram na região. Nos primeiros tempos de invasão a denominação ainda era religiosa – Vera Cruz ou Santa Cruz -, mas a mercadoria venceu a divindade. Utilizado para pintar tecidos de vermelho, o pau-brasil era matéria prima do consumo de luxo, assim como eram mercadorias de luxo o açúcar, o ouro, as especiarias etc. Os beneficiários diretos da colonização eram um grupo muito pequeno de pessoas, reis, clérigos, nobres e burgueses brancos europeus que ao longo de séculos invadiram cada parte do mundo não-europeu para saqueá-lo, primeiro em nome de Deus, depois da Civilização, do Progresso, da Democracia e de outras lorotas.
Um dicionário do início do século XVIII permite observar que, duzentos anos depois de Cabral, “brasil” tinha diversos significados. Ainda era o pau-brasil, e a tinta feita a partir de pau-brasil, goma arábica e aguardente. Era também uma “Grande Região da América Meridional descoberta por Pedro Álvares Cabral, que ia por Capitão-mor da segunda armada que el-Rey D. Manoel (de felice memória) mandou à Índia”. Por fim, “toma-se às vezes por homem natural do Brasil”, como na expressão “línguas dos Brasis” para designar os idiomas falados pelos habitantes dessa terra.
Os Brasis – ou seja, os povos que habitavam a grande região da América do Sul colonizada por Portugal – eram muitos, eram diversos e tiveram histórias tão complexas quanto a história branca do Brasil que nos é apresentada desde a infância. Alguns Brasis estão neste Calendário, em episódios marcantes (ou seja, excepcionalmente bem documentados) de sua história. Os Tupinambás, em janeiro, março e julho; os Guarani em fevereiro, os Paiaguás em junho; os Manaus em setembro. Essas histórias incluem desde tentativas de acabar com a colonização européia, destruindo cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, São Luís e Belém do Pará, até um assalto organizado por indígenas do Pantanal que levou grande parte de um carregamento de ouro de Cuiabá.
A história dessa resistência tem sido construída com base em fontes escritas pelos europeus, mas também em estudos arqueológicos, etnológicos e antropológicos. Afinal, são raríssimos os testemunhos escritos deixados por indígenas dos primeiros séculos de colonização.
Uma dessas fontes, tão raras quanto preciosas, é o discurso de Momboré-uaçu, chefe da Aldeia de Essauap, Maranhão, em 1612. Procurado por franceses que queriam sua aliança contra os portugueses, o líder indígena apresentou argumentos para sua desconfiança com relação aos europeus. Disse que viu com seus próprios olhos quando os portugueses chegaram em Pernambuco e que, assim como os franceses faziam agora, eles tinham chegado sem pretender fixar residência, apenas realizando trocas comerciais e adaptando-se aos costumes de seu povo, incluindo seus modelos familiares. Porém, passado o tempo, “disseram que nos devíamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e edificarem cidades para morarem conosco. E assim parecia que desejavam que constituíssemos uma só nação.” Em seguida, trouxeram padres para impor o modelo cristão de família e disseram que nem os colonos nem os padres “podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem”. Constrangeram seu povo a capturarem pessoas de outros povos para escravizar e, logo depois, “não satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nação; e com tal tirania e crueldade a trataram, que os que ficaram livres foram, como nós, forçados a deixar a região.”
A oralidade foi o instrumento primordial para a construção e reconstrução, a cada geração, das histórias afroindígenas do Brasil, em especial nas épocas anteriores à massificação do letramento, ocorrida apenas no século XX. Fontes escritas que trazem perspectivas desses povos são raras. Outros relatos preciosos podem ser encontrados na troca de cartas, em tupi, entre dois líderes potiguares que se encontravam em lados opostos na guerra entre Portugal e Holanda.
Nas cartas, Felipe Camarão, aliado dos portugueses, chega a se questionar, escrevendo a um parente, aliado dos holandeses: “Por que faço guerra com gente de nosso sangue, se vocês são os verdadeiros habitantes desta terra? Será que falta compaixão para com nossa gente?”. Alerta ainda para o fato de que os europeus, fossem portugueses católicos ou holandeses protestantes, não consideravam os potiguares seus iguais, o que ficava evidente no tratamento diferenciado dado aos derrotados em guerras. “Não pensem que se poupa a vida dos potiguaras, da gente nossa, por esses terem sido feitos chefes. Não pensem que os holandeses livram vocês de nós. Somente a vida deles é poupada. E por que, se eles são estrangeiros?”. Assim, em 1645, Felipe Camarão já dizia o que muitos ainda hoje se recusam a entender: a racialização estrutura a sociedade brasileira desde o período colonial.
Porém, ainda que questionasse a guerra e os colonizadores, Felipe Camarão optou por se aliar aos portugueses e combater seus próprios parentes. Fez isso, segundo suas cartas, por temer o inferno. Do lado oposto, Pedro Poti, aliado dos holandeses, também tinha passado por um bem-sucedido processo de conversão religiosa, neste caso calvinista. Argumentava: “Sou Cristão e melhor do que vós: creio só em Cristo, sem macular a religião com idolatria, como fazeis com a vossa. Aprendi a religião cristã e a pratico diariamente, e se vós a tivésseis aprendido, não serviriam aos inimigos portugueses.” Assim, o cristianismo que chegou ao Brasil com as caravelas, fossem seus capitães católicos, calvinistas ou huguenotes, era uma religião que promovia a guerra e a sujeição à espoliação colonial por meio do controle familiar e do medo, em especial o medo do inferno.
As missões jesuítas para a conversão dos indígenas foram formas alternativas de espoliação colonial e não uma luta contra esta espoliação. Nelas, o trabalho também era compulsório e em diversos casos se direcionava aos lucros do mercado europeu. Além disso, os mesmos jesuítas que confrontaram a escravização de indígenas nas Américas foram ferrenhos defensores da escravização de pessoas negras, trazidas à força do continente africano desde os primeiros tempos da colonização.
O silêncio mais gritante na narrativa do “descobrimento” como origem do Brasil diz respeito ao fato de que a imensa maioria da população submetida a Portugal durante os três séculos de colonização era formada por cativos africanos e seus descendentes. Apresentar uma imagem sem pessoas negras como a origem do Brasil é uma mentira nada inocente contada pelas elites brancas do período imperial em imagens como a da “primeira missa”. Entre 1550 e 1850, de cada 100 indivíduos que entraram no Brasil, 86 eram escravizados africanos, e apenas 14 eram portugueses. O número de pessoas traficadas do Brasil representou quase metade do total da escravidão moderna no mundo, cerca de dez vezes mais que os Estados Unidos, por exemplo.
Esta imensa presença negra tem uma história tão diversa e complexa quanto aquela dos povos indígenas. Também neste caso, as fontes escritas da perspectiva dos colonizados são raras, restando quase exclusivamente fontes da repressão. Por exemplo, as descrições de quilombos e mocambos que existem são, no geral, relatos escritos por homens cuja missão era exterminá-los.
Uma preciosa exceção é um tratado proposto por escravizados que se rebelaram em Ilhéus, no ano de 1789. Neste documento, abordado no mês de outubro, é possível observar a importância da luta por condições menos desumanas de vida e de trabalho, por autonomia e por liberdade de manter práticas culturais de matriz africana. Essas lutas também estavam presentes nas irmandades religiosas negras que, entre outras coisas, juntavam dinheiro de doações para comprar a alforria daqueles que estavam no cativeiro. Porém, foi sobretudo por meio da fuga e da formação de quilombos que a luta contra a escravidão pôde se desenvolver, o que ocorreu em todas as regiões do Brasil ao longo de mais de três séculos de cativeiro.
O primeiro registro que os colonizadores deixaram sobre a existência de um quilombo data de 1575. Fazia poucas décadas que o primeiro navio negreiro aportou na costa brasileira, o que significa que não demorou mais que uma geração para que a resistência negra se mostrasse como um problema para os colonizadores. A resistência sempre esteve aí. Palmares, o maior de todos os quilombos, durou quase um século e só foi derrotado após dezenas de campanhas militares lideradas por portugueses, por holandeses, por milícias organizadas por senhores de engenho locais e até mesmo por bandeirantes paulistas, que foram deslocados até Pernambuco a fim de exterminá-los (e neste caso, conseguiram).
Neste calendário, a história de Palmares é contada tanto em novembro, mês em que seu último rei, Zumbi, foi derrotado, quanto em abril, que narra o que ocorreu com os habitantes de Palmares que aceitaram negociar com os colonizadores, fundando a aldeia de Cucaú. Além disso, contamos a história dos quilombos de Campos de Goytacazes em maio e de revoltas contra a escravidão envolvendo populações quilombolas na Bahia e no Rio de Janeiro, em agosto.
Os quilombos foram muito diversos entre si, em suas estruturas políticas culturas, religiosidades, estratégias, atitudes…. Primeiro porque havia muitas Áfricas no Brasil, segundo porque cada lugar um lugar, cada lugar uma lei, cada lei uma razão. Em Palmares, é significativo que o nome do reino também venha de uma planta, mas não uma planta como o pau-brasil que, cortado e embarcado, virava luxo e lucro na Europa. Os habitantes de Palmares eram predominantemente falantes de quimbundo, herdeiros de culturas centro-africanas, do Congo e de Angola. Cultivavam palmeiras que serviam para funções que iam desde a construção, a alimentação e a fabricação de armas. Reconstruíam assim, a partir de vivências múltiplas e traumáticas, um universo civilizacional centro-africano que o colonizador também chamou de barbárie e selvageria, ainda que com argumentos diferentes daqueles usados para desumanizar os indígenas.
Por fim, além de onze meses dedicados à rememoração da resistência afroindígena ao colonialismo, contamos, em dezembro, a história dos motins contra a fome e a carestia em Minas Gerais. Esses movimentos, protagonizados por setores livres pobres da população, expressam também a luta contra os desígnios dos reis, capitães-generais e demais beneficiários da exploração das maiores minas de ouro até então encontradas no planeta. O ouro do Brasil (não apenas de Minas Gerais, mas também de Goiás, do Mato Grosso e de outras regiões) encheu os cofres europeus, enquanto nos espaços coloniais a população, com raras e brancas exceções, era submetida à fome, à peste e à miséria.
No final do período colonial, será principalmente a população livre pobre e liberta que encontrará nas ideias de revolução e de independência uma possibilidade de transformação radical da sociedade. Não tanto em Minas Gerais, onde os inconfidentes eram justamente os mais ricos e prestigiados membros da elite branca colonial, com um projeto exclusivista de nação, à imagem e semelhança da Independência dos Estados Unidos. Foi na Bahia, durante a Revolta dos Búzios, que a sociedade colonial foi criticada de cima a baixo com base em novos princípios, aqueles mesmos da queda da Bastilha: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Mas essa história já contamos numa edição anterior do Calendário.
Estamos na terceira edição do Calendário Insurrecional, propondo uma história apátrida num tempo farto de história pátria. Tempo de mitos, tempo de capitães-generais, tempo de profissionais da violência apoiados por clérigos de má índole, tudo para ampliar o patrimônio de grandes investidores, que constituem uma minoria irrisória da população mundial. Tempo de colonialismo.
Como se não bastasse, o imaginário neofascista do Brasil se alimenta justamente dos mitos relacionados ao “descobrimento”, com velhas lorotas sobre cruzadas, expansão da fé, e superioridade do tal do Ocidente. “Ocidental” é um dos nomes pomposos que a branquitude dá a si mesma, como já foi “cristandade” no tempo de Cabral.
Depois de tantos genocídios em todos os continentes, sabemos que este Ocidente nada tem de civilizado. Como afirmou o escritor Aimé Césaire logo após a autodestruição europeia na Segunda Guerra Mundial, a colonização desciviliza o colonizador. A Europa que colonizou o resto do mundo por meio milênio tornou-se bárbara o suficiente para colocar milhões de seus próprios cidadãos em fornos e incinerá-los. Para isso, usou armas, estratégias e argumentos racistas que já haviam sido usados à exaustão contra populações coloniais. Enquanto modelo de civilização, a Europa, o Ocidente, a cristandade – chame-se como quiser a identidade da branquitude colonialista – é simplesmente indefensável.
Neste quadro, que aprendamos a olhar para outras tradições civilizatórias. As palmeiras e a liberdade plantadas em Palmares seguem sendo o sustento material e imaterial de diversas comunidades quilombolas do nordeste brasileiro, em especial no Maranhão e Piauí. Que possamos aprender um pouco das múltiplas heranças civilizatórias que, como essa, compõe a tradição dos oprimidos. Há muita coisa por trás das imagens e das mentiras da história pátria.