Calendário Insurrecional 2022: as Independências que os senhores quiseram sufocar (e em muitos casos conseguiram)
Em 2022, a data oficial de Independência do Brasil completa 200 anos. Isso significa que além de ter que sobreviver a tudo isso que está aí, você irá escutar novamente toda aquela velha conversa sobre a família real portuguesa que “trouxe a civilização”, sobre a Ilustração do “patriarca da Independência” e principalmente sobre o piti que o principezinho deu, às margens de um riacho, concluindo por “proclamar” a Independência do Brasil, pátria amada, salve salve.
Este Calendário fala da Independência do Brasil, mas não fala dessa ladainha toda, que também é bicentenária, por sinal. Apenas tangencialmente vamos falar sobre a barbárie que a família real trouxe em nome da civilização, sobre os limites da Ilustração do “patriarca” e sobre o quanto a cena patética de Sete de Setembro de 1822 foi de fato patética e não significou rigorosamente nada para a imensa maioria das pessoas da época.
O tema aqui são as lutas por independência que não cabiam nas pretensões do príncipe e da elite escravocrata que o apoiou. Antes de mais nada, trata-se de falar de lutas como a dos indígenas Krenak para sobreviver ao extermínio ordenado pelo pai desse pilantra e por ele continuado (maio) ou a luta dos Haussá, centro-africanos traficados para o Brasil sob o domínio desses mesmos pilantras, que se rebelaram várias vezes para tentar se libertar da escravidão (fevereiro). Nesses casos, não se trata de lutas diretamente relacionadas à separação do Brasil com relação a Portugal, mas sim a lutas por existência/resistência que atravessam séculos, num país que segue dominado por escravocratas cada vez mais explícitos em seu racismo, misoginia e desprezo pela vida dos mais pobres. Na época da Independência, não eram apenas os Krenak e os Haussá que resistiam ao Brasil, mas também Nagôs, Angolas, Guaicurus, Guaranis e tantos outros povos e nações que em 1822 deixaram de resistir a Portugal e passaram a resistir ao Brasil, sem que mudasse a brutalidade dos que os escravizavam ou exterminavam.
Além disso, o Calendário fala sobre as pessoas que lutaram pela Independência de seu país com relação à Europa e que, nesta luta, embarcaram em sonhos de liberdade e igualdade, fosse seu país o Brasil, a Grã-Colômbia, a Liga dos Povos Livres, a República Pernambucana ou a Confederação do Equador.
Se existe algo para se celebrar nas Independências é o fim do controle direto dos Estados europeus sobre quase toda a América, mas existem casos, como o dos Estados Unidos, em que a ordem que se segue é totalmente exclusivista por parte dos descendentes de europeus. Trocou-se o colonialismo que direcionava os lucros para a Europa pelo colonialismo que direcionava os lucros para a elite local, proclamando-se a “democracia” sem qualquer pretensão de universalizar a participação política ou mesmo a liberdade pessoal, mesmo em termos liberais. A história dos Estados Unidos, assim como a do Brasil, mostra o quanto liberalismo e a escravidão combinam muito harmoniosamente, já que se organizam sobre o mesmo princípio comum da propriedade acima de tudo.
A separação política entre Europa e América foi vivida de maneira diferente e em tempos diferentes em cada Estado nacional, e também em cada região, localidade ou parcela da população num mesmo país. As Independências tiveram resultados muito diversos para os de baixo, que em muitos casos viveram trajetórias tortuosas. No Brasil, a Independência foi percebida como caminho para a liberdade para centenas de negros escravizados que se engajaram na guerra na Bahia (dezembro) e para milhares de indígenas que se reivindicaram cidadãos brasileiros na Amazônia (janeiro), tanto quanto foi o caminho para a perseguição desses mesmos soldados e para o massacre desses mesmos cidadãos, rapidamente tornados inimigos pelo Estado nacional escravocrata e racista que ajudaram a fundar, apesar de sua vontade.
Falar dos “de baixo” não é falar numa classe abstrata de produtores, mas em pessoas diversas que estão estruturalmente em situação desfavorável nas relações de poder. Os Krenak que resistiam ao colonialismo brasileiro não eram proletários, tampouco os Haussá tinham sua existência definida exclusivamente pelo trabalho escravo. Reduzi-los a “trabalhadores”, encará-los como “braços e pernas” utilizáveis na produção era o que os colonizadores portugueses e seus descendentes brasileiros brancos queriam, mas de forma alguma o que essas pessoas queriam para si próprias e para seus descendentes. A luta de quem encara opressões sistêmicas como a escravidão e o patriarcado é uma luta pela existência, pela liberdade, pela autonomia, e se apoiam em identidades como qualquer outra luta feita por seres humanos, o que não deveria espantar.
São doze meses, iniciando-se em março de 2022 e terminando em fevereiro de 2023, cada mês dedicado a uma experiência de busca por independência e autonomia no território ocupado pelo Estado brasileiro. Além dos eventos em que nos debruçamos mensalmente, cada mês conta também com efemérides diárias que remetem a lutas populares, por liberdade e autonomia. A versão para download se diferencia da versão impressa por ser colorida!