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O Império do Brasil contra os “anarchistas”

Durante o período imperial, as mais diversas regiões do Brasil viveram grandes mobilizações populares, muito variadas, mas que no discurso repressivo eram combatidas sob o rótulo da anarquia – ou “anarchia”, como se escrevia na época.

“Revoltas anárchicas”, “rebeldes anarchistas”, “partidos anarchizadores” são expressões comuns no vocabulário político do século XIX brasileiro.

Os primeiros ensaios de revolução no Brasil ocorreram ainda no final do século XVIII, com destaque para a Revolta dos Búzios, também conhecida como Sedição Baiana ou Revolta dos Alfaiates (1798). Esta tentativa de fazer a Revolução Francesa na Bahia foi seguida, na primeira metade do século, por conflitos armados de grande escala, num verdadeiro ciclo de revoluções e guerras civis, incluindo a Revolução Pernambucana de 1817, a Guerra de Independência (1821-1823), a Confederação do Equador (Nordeste, 1824), as revoltas dos mercenários estrangeiros no Rio de Janeiro (1828), a Guerra dos Cabanos (Pernambuco e Alagoas, 1832-1835), a Rusga (Mato Grosso, 1834), a Cabanagem (Amazônia, 1835-1840), a Guerra dos Farrapos (Sul do Brasil, 1835-1845), a Sabinada (Bahia, 1837-1838), a Balaiada (Maranhão e Piauí, 1838-1840) e a Praieira (Pernambuco e Alagoas, 1848-1850). Em todos esses movimentos, cada qual à sua maneira, foram colocadas em questão desigualdades sociais e raciais e a violência do Estado que atingia seletivamente pessoas pretas, pardas, indígenas e caboclas.

Já a partir da década de 1850, predominam grandes mobilizações populares que se utilizam de protestos de rua, da ação direta e da autodefesa diante da ação repressiva. Trata-se de movimentos contra a possibilidade de escravização de pessoas legalmente livres (o Ronco da Abelha, em 1852), contra a carestia (a Revolta da “Carne sem osso, farinha sem caroço”, em 1858), contra tributos e regulamentações que atingiam a economia dos pobres (o Quebra Quilos, em 1874), contra a tarifa do transporte (o Motim do Vintém, entre 1879 e 1880), dentre outros.

Além disso, durante todo o período, ocorreram grandes e pequenos episódios de resistência à escravidão, organizadas pelas próprias pessoas escravizadas, em movimentos como as revoltas haussás no início do século, o Levante dos Malês, em 1835, a Insurreição de Queimados, em 1849, e a Greve dos Ganhadores, em 1857. Nesses casos, tratava-se de formas de solidariedade, organização e luta construídas por pessoas que resistiam à escravidão a partir de referências políticas, culturais e religiosas de matriz africana.

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A luta que cidadãos e cidadãs livres pobres e libertas travavam por respeito a seus direitos dialogou com as lutas de pessoas escravizadas apenas em alguns momentos dessa longa história. No Brasil imperial, a escravidão era a instituição mais importante a organizar as relações sociais, inclusive no que diz respeito à política, já que era essa linha que definia quem legalmente possuía ou não cidadania. Ainda assim, a solidariedade e o apoio mútuo entre livres pobres que lavravam a terra, indígenas e quilombolas chegou a ocorrer em momentos de grande mobilização popular, como na Guerra dos Cabanos e na Balaiada. Já na década de 1880, o Abolicionismo surgiu como primeiro movimento social organizado no Brasil, defendendo como pauta única o fim imediato do cativeiro e aproximando, agora de maneira muito mais efetiva, tradições de luta das pessoas livres e das pessoas escravizadas.

Os movimentos anárquicos do século XIX eram múltiplos, mobilizando ideários de luta que podiam incluir o cristianismo popular, o liberalismo radical (ou “exaltado”, como se dizia na época), as primeiras influências do socialismo, a resistência indígena e a longa tradição quilombola, marcante em toda a história da formação brasileira.

Portanto, não se tratava do anarquismo como ideologia política moderna, construída lado a lado com o socialismo no século XIX, numa longa trajetória de luta, organização e crítica da sociedade industrial burguesa. Autores como Bakunin, Proudhon e Kropotkin são contemporâneos do período imperial brasileiro, mas só começaram a ser discutidos no país quando a monarquia estava em sua crise final – e ainda de maneira muito esparsa, sem que existisse algo como um movimento anarquista.

Conheceremos o começo da recepção das ideias anarquistas no Brasil no mês de outubro deste Calendário, já que um dos mais antigos divulgadores desse ideário por aqui foi linchado por militares que faziam a guarda do imperador d. Pedro II em 25 de outubro de 1883, motivando uma revolta popular na Corte Imperial. Em seu jornal, Apulcho de Castro comentava debates entre socialistas e anarquistas no movimento operário europeu e traduzia biografias como a de Sophia Perovskaya, revolucionária russa que participou do assassinato do Czar Alexandre II, em 1881.

As ideias anti-monárquicas, anti-escravistas e anti-militaristas deste jornalista negro do Rio de Janeiro imperial encontraram uma interlocução com o anarquismo europeu, mas de forma alguma dependiam dele para existir. Na década de 1880, quando a monarquia brasileira aprofundou sua crise até ser derrubada por um golpe militar, as ideias e revoltas “anárchicas” daqui já tinham uma longa trajetória de busca por autonomia, de uso da ação direta e de crítica radical à violência do Estado. Não foram imigrantes os realizadores das primeiras greves, nem foram eles os primeiros a construir barricadas nas ruas das metrópoles brasileiras.

Este Calendário Insurrecional do Brasil contém as revoltas que Pedro II não gostaria que fossem um dia rememoradas. Este, membro de uma família real orgulhosa de seu sangue puro europeu, amigo de elaboradores do racismo moderno como o suíço Luis Agassiz e o brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen, é frequentemente recuperado como símbolo de um Brasil da “ordem”, da “civilização” e da cultura letrada. A história promovida por Pedro II, por Varnhagen e por outros membros da elite imperial é uma história dos “grandes homens brancos”, voltada para o apagamento de tudo que neste Calendário estará exposto.

Quando o saudosismo monárquico frequenta cada vez mais o esgoto a céu aberto da vida política brasileira, talvez seja a hora de chamar os anárquicos do Império para frequentar nossas casas e nossos dias.

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