Sobre cheias e enchentes
Quando habitamos uma grande metrópole, sabemos que o início do ano é a época das enchentes. Nesse intervalo, a todo momento ouvimos frases prontas como “a cidade para”, “situação de calamidade pública” e “a água levou tudo”. Mesmo assim, apesar da comoção instantânea e dos prejuízos materiais, não desconfiamos de que na próxima época de chuvas a história se repetirá. Para descobrir uma das principais razões do fenômeno das enchentes, basta se perguntar ao caminhar pela cidade: “cadê o rio que um dia esteve aqui e escoava toda essa água?”
No ano passado, a História da Disputa teve o privilégio de investigar a história do Rio Tamanduateí, um dos vários rios paulistanos em que o progresso e a urbanização alteraram drasticamente seu curso. Houve um tempo em que o regime das águas não representava um empecilho para as populações que viviam em suas margens, mas, pelo contrário, significava vida. Por exemplo, a palavra Tamanduateí, em Tupi, remonta ao animal que circulava por suas margens atrás das formigas que se multiplicavam após as cheias. Sabe-se também que o aumento do volume de água do rio era essencial para a reprodução dos peixes e para a pesca que abastecia os estômagos da cidade.
O progresso da urbes, no entanto, ia de encontro à existência natural do rio, segundo o Estado e seus engenheiros e médicos. Optaram então por canalizar, soterrar, esconder, controlar, civilizar o Tamanduateí. O resultado pode ser conferido todo verão nas regiões que integram sua margem, quando o rio transborda e retoma por um instante a área que um dia foi sua.
A culpa pela tragédia não é do rio, nem das chuvas, mas sim de um modo de vida que não admite possibilidade de harmonia com a natureza.
Foto: Vista da Várzea do Carmo a partir da encosta do Pátio do Colégio. Militão Augusto de Azevedo. 1862. IMS